O mito e a mística do falante nativo – a quem serve essa discussão

A educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é a preparação para a vida, é a própria vida. (Post para Instagram (quadrado)) (Capa para Facebook) (1920 × 600 px) (3)

Antonieta Megale

(Página 2 - Brochura YA)

Os estudos sobre ensino de línguas adicionais, sobretudo nas últimas duas décadas, avançaram na compreensão de língua como prática social. Desse modo, fogem de conceitos relacionados a línguas e culturas nativas. No entanto, persiste ainda o mito de que o professor nativo seria o melhor professor para o ensino da língua, em muitos casos, independente de sua formação acadêmica ou experiência como docente. Mas como surgiu essa ideia de que falantes nativos são melhores preparados para o ensino da língua adicional? 

A ideia de que existam “donos da língua” origina-se junto às construções de nacionalismo, estado-nação e língua-nação já desconstruídas por diversos autores. Anderson (1989), a fim de compreender todo o imaginário ligado à nação, analisa a mágica do nacionalismo; a partir dos sistemas culturais amplos que o precedem e o constituem.

Anos depois, Bhabha (1995) foi mais longe na análise dos imaginários nacionalistas e os discutiu a partir das teorias tropológicas, ou seja, as próprias nações são narrativas e o imaginário nacional nasceu do poder de narrar, articular ou impedir que outras narrativas fossem formadas. Nesse processo, a consolidação das línguas vernáculas foi um fator determinante na formação dos nacionalismos modernos. A constituição da nação implicou na existência de uma língua própria, o que fez, por exemplo, com que as variantes dentro de uma mesma língua fossem homogeneizadas. Essa homogeneização possibilitou “o surgimento de uma nova consciência, a de pertencer a um grupo caracterizado pelo mesmo campo linguístico, que, por sua vez, determina uma fronteira de exclusão” (BLANK, 2008, p.3).

Já no século XX, o império britânico atingiu seu apogeu e a Inglaterra se consolidou como um estado colonialista. Nesse mesmo período, no entanto, devido às consequências da Segunda Guerra e ao processo de independência das colônias, o império inglês conheceu seu declínio e cedeu lugar aos Estados Unidos da América, que se tornou líder do bloco ocidental. De acordo com Siqueira (2008), a partir de então, os Estados Unidos concentraram grande poder econômico, político, militar e cultural. Em 1989, se transformaram, com a queda do muro de Berlim, em uma “superpotência hegemônica, encontrando no inglês campo fértil para sua expansão global” (SIQUEIRA, 2008, p.55).

Para analisarmos as especificidades do mito do falante nativo no Brasil, uma vez que sabemos que isso não ocorre somente por aqui, é importante entendermos a configuração do mundo na atualidade. O mundo foi adquirindo, portanto, a partir da hegemonia dos EUA, seu desenho atual, que a partir de Santos (2009), se organiza em dois pólos: o Norte e o Sul Global. O autor explica que essa concepção de Sul sobrepõe-se em parte ao Sul geográfico. Esses países do Sul foram submetidos ao colonialismo europeu e, com exceção da Austrália e da Nova Zelândia, não atingiram níveis de desenvolvimento econômico semelhantes aos do Norte Global, constituído pela Europa e América do Norte.

Países do Sul Global, muito embora não tenham mais o status legal de colônia, ainda estão submetidos ao regime da colonialidade, que para além de todas as dominações, exerce também uma dominação no campo epistemológico, ou seja, todas as práticas sociais de conhecimento e seus agentes que contrariam a “missão colonizadora” (SANTOS, 1998, p.208) são desacreditados.

Vivemos, portanto, sob o regime colonial que valoriza e legitima o Norte Global e, consequentemente, seus cidadãos como detentores do conhecimento. Desse modo, as práticas de linguagem atreladas aos construtos de falante nativo e inglês padrão desconsideram e apagam “outros usos e outras práticas que não aquelas percebidas como características dos países centrais que seriam os donos da língua” (JORDÃO et al., 2020, p.41).

Nessa perspectiva, excluímos cidadãos, em nosso caso, professoras e professores, a partir das relações de poder que geram discriminação e marginalização e os rotulamos como não nativos. O termo falante nativo é, portanto, sustentado como ícone de poder, prestígio e modelo a ser seguido. Parece não importar, desse modo, se o falante nativo se dedicou ou não ao estudo da língua e das didáticas voltadas para seu ensino. Nessa perspectiva, o local de nascimento do professor parece funcionar como um certificado que atesta seu preparo para o ensino da língua.

Por meio dessa herança colonial, fragilizamos nossos educadores, os colocando em um lugar sempre desfavorável a partir de uma classificação que leva em conta apenas e simplesmente o local de nascimento desses sujeitos e não os conhecimentos apreendidos ao longo da vida acadêmica e da experiência profissional. Encampamos também pedagogias que não se comprometem com o desenvolvimento da criticidade dos estudantes frente aos desafios e especificidades de cada contexto.

Outro ponto importante de ser ressaltado é que o inglês é utilizado como língua de interação em cerca de 70 países (EBERHARD et al., 2020). No entanto, normalmente, na escola, privilegiamos o inglês dos países hegemônicos, como Estados Unidos, Reino Unido, Irlanda, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Desse modo, é relevante também salientar que não basta ser nativo, é preciso ser nativo oriundo de um país do Norte Global, ou seja, não há interesse, por exemplo, em um nativo nigeriano ou jamaicano. Isso nos permite constatar que a questão central não é simplesmente a de ser nativo, mas principalmente a de ser nativo de um país hegemônico.

Além disso, não é novidade alguma que haja um número significativamente maior de falantes não-nativos do que de falantes nativos de língua inglesa. Consequentemente, os encontros, nos quais nossos estudantes vão fazer uso do inglês, envolverá sujeitos provenientes de diversas localidades com histórias e trajetórias de vida que marcam seus modos de falar tanto em relação ao sotaque quanto às suas escolhas linguísticas.

Diante desse cenário, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) defende o ensino de inglês como língua franca. De acordo com Seidlhofer (2011, p.7), o inglês como língua franca pode ser entendido como “qualquer uso do inglês entre falantes de diferentes línguas maternas para quem ele é o meio de comunicação escolhido, e frequentemente, a única opção”.

Assim, depreendemos que é essencial para a formação linguística de nossos estudantes que nos debrucemos também a ouvir e interagir com diversos sotaques e modos de falar para que estejam preparados para se relacionar com diversos falantes que têm o inglês como língua franca.

Na atualidade, os estudantes precisam aprender inglês como uma língua adicional de comunicação internacional ampla. Por conta dessa mudança na natureza do uso do inglês, é hora de reconhecer o contexto multilíngue de seu uso, “para deixar de lado a pesquisa e a pedagogia do modelo do falante nativo” (McKAY, S. L. 2003, p. 19). 

Referências

BENEDICT, A. Nação e consciência nacional.São Paulo: Ática, 1989

BHABHA, H. DissemiNation: time, narrative, and the margins of the modern nation. In: 

BHABHA, Homi. Nation and narration. New York: Routledge, 1995. 

BLANK, T. O Papel dos Cinejornais Alemães sobre o Brasil na “Comunidade Imaginada” Nazista. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008.

BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica. Conselho Nacional deEducação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC; SEB, 2018.

EBERHARD, D.; Gary F.; Charles D. (eds.). 2020. Ethnologue: Languages of the World. Twenty-third edition. Dallas, Texas: SIL International. Online version: http://www.ethnologue.com.

JORDÃO, C.; FIGUEIREDO, E.; LAUFER, G.; FRANKIW, T. Internacionalização em inglês: sobre esse tal de unstoppable train e de como abordar a sua locomotiva. REVISTA ÑEMITRÃ, 2021, vol. I, num. 2.

McKAY, S. Toward an appropriate EIL pedagogy: reexamining common ELT assumptions. In: International Journal of Applied Linguistics, vol 13, no. 1, p. 1-22, 2003.

SEIDLHOFER, B. Understanding English as a Lingua Franca. Oxford: Oxford University Press, 2011.

SIQUEIRA, D. Inglês como língua internacional: por uma pedagogia intercultural crítica. 2008. 358 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) − Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.

SANTOS, B. La globalización del derecho: los nuevos caminos de la regulación y la emancipación. Bogotá: ILSA, Universidad Nacional de Colombia. 1998.

SANTOS, B.; MENESES, M. Epistemologias do Sul. Coimbra. Almeidina, 2009.

Páginas 6, 7, 8 e 9 Ebook YA Future

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